sábado, 6 de agosto de 2011

O IPÊ E A ESCOLA - RUBEM ALVES

Leia, vale a pena!


Eu me lembro perfeitamente bem da primeira vez que li Buber. Era de tarde, deitado numa rede, lá em Minas... À medida em que eu lia a alegria ia tomando conta de mim. Ficava alegre porque as palavras de Buber traziam luz ao meu mundo interior. Naquilo que ele dizia, eu me reconhecia.

O seu livro mais importante é Eu-Tu. Não seria aceito como tese em nossas universidades. Não tem notas de rodapé. Não cita fontes. Não enuncia teorias. Não explica o método. Curto demais para uma tese. Mas, como sabia Nietzsche, “pensamentos que chegam em pés de pombas guiam o mundo...“

Lendo “Eu-Tu“ os meus olhos se abriram. Compreendi aquilo que eu vivia sem compreender. Eu quero contar a vocês o que eu vi.

Aqui o meu pensamento ficou paralisado. Não sabia como contar a vocês o que vi. Resolvi dar uma caminhada. E lá ia eu, absorto em meus pensamentos, quando, de repente, bem à minha frente, uma explosão de cores: a terra ejaculando flores - flores que estavam escondidas dentro dela! Um ipê rosa florido! Já pensaram nisso? Que as flores são os pensamentos da terra? A terra pensa flores! Dentro dela, as flores ficam guardadas, dormindo, mergulhadas na escuridão. Mas, pela magia de uma árvore, os pensamentos da terra se oferecem aos nossos olhos sob a forma de flores! Dentro da terra estão todas as flores do mundo, à espera de árvores... A terra sonha ipês! As árvores são os psicanalistas da terra!

Aí descobri um jeito de explicar Martin Buber... Aquilo que aconteceu, aconteceu comigo. Só comigo. Tive vontade de abraçar aquela árvore, de comer as suas flores. Fiquei agradecido por ser a natureza coisa tão maravilhosa, sagrada! Mas sei que muitas pessoas já haviam passado, estavam passando e irão passar por aquele ipê sem se assombrar. Para elas aquele ipê é apenas um objeto a mais, ao lado de postes, casas e carros. Já contei de uma mulher que odiava um manso e maravilhoso ipê amarelo que havia à frente de sua casa. Ela odiava o ipê porque suas flores sujavam o chão! Chão de ouro, coberto de flores amarelas, flores que deveriam ficar lá! Seria necessário tirar os sapatos dos pés para andar sobre elas! Mas aquela mulher não via com os olhos. Via com a vassoura. E uma vassoura dá sempre a mesma ordem: varrer, varrer! Tudo o que pode ser varrido é lixo! E ela, para se livrar do trabalho, envenenou o manso ipê. O ipê morreu. Não mais suja a calçada da mulher.

Agora explico Buber. Para Buber as coisas, as árvores, os bichos, as pessoas, não são coisas, árvores, bichos e pessoas, nelas mesmas. Elas são a partir da relação que estabelecemos com elas. Para a mulher da vassoura o ipê amarelo era um objeto inerte, sem mistério. Ela podia fazer com ele o que quisesse. Mas para mim os ipês são um assombro, beleza, alegria, revelação do mistério do universo.

Há um tipo de relação que transforma tudo em objetos mortos. Uma mulher se transforma em objeto para o homem que faz uso dela para ter prazer. Um homem se transforma em objeto para a mulher que o usa para obter status ou segurança. Uma criança se transforma em objeto quando seus pais a manipulam para realizar os seus sonhos. Para um professor que só pensa no cumprimento do programa todos os seus alunos são objetos. Para quem está atrás de milagres Deus é um objeto que faz milagres. O eleitor é um objeto que o político usa para ganhar poder. Um doente, para o médico, pode ser apenas um “portador de uma doença“. (Ah! Os professores e alunos, à volta de um doente sobre quem nada sabem, nem mesmo o nome, numa enfermaria de hospital! Ali não está um ser humano! Ali está um “caso“ interessante...). Buber deu a esse tipo de relação o nome de “eu-isso“. Tocadas pela relação eu-isso, todas as coisas, pessoas, animais, árvores, Deus, se transformam em coisas que uso para atingir os meus propósitos. Eu sou o centro do mundo. Tudo o que me cerca são utensílios que uso para os meus propósitos.

Quando, ao contrário, meus olhos estão abertos para o assombro e o mistério das coisas que me rodeiam, eu refreio minha mão. Não posso usá-los como se fossem ferramentas para os meus propósitos. São meus companheiros – não importa se um ipê florido, um cãozinho, um poema, uma criança que quer me vender um drops no semáforo... Buber deu o nome de “eu-tu“ a essa relação.

Já falei que as nossas escolas são planejadas à semelhança das linhas de montagem: as crianças são “objetos“ a serem “formados“ segundo normas que lhe são exteriores. Ao final, formadas, são objetos portadores de saberes, centenas, milhares, todos iguais. Pertencem ao mundo do eu-isso. Na relação eu-tu cada criança é única – por ser uma companheira na minha vida, companheira que nunca se repetirá, nunca haverá uma igual.

No mundo do eu-isso se usa o poder porque o que desejo é manipular o objeto. No mundo do eu-tu o poder nunca é usado porque o que desejo é acolher, dentro de mim, o objeto à minha frente.

Escrevi tudo isso porque tenho estado pensando na magia da Escola da Ponte. Qual o seu segredo? Sua magia se encontrará, por acaso, nos seus princípios pedagógicos? Não. Definitivamente não. Princípios, quaisquer que sejam, são normas gerais. Por isso eles pertencem ao mundo do eu-isso. Se tentássemos reduplicar a Escola da Ponte usando os mesmos princípios pedagógicos como receitas, apenas conseguíssemos construir uma linha de montagem mais gentil e, talvez, mais eficiente. Me parece que o segredo da Escola da Ponte se encontra em outro lugar. Ele se encontra no mesmo lugar do ipê florido: o absoluto abandono do uso do poder e da manipulação. Imaginem uma escola onde não há um diretor. Todos os professores são diretores. Pela simples razão de não haver quem tome as decisões finais; onde “diretores“ não ousam e nem querem usar do poder para fazer valer suas idéias. Onde as decisões são todas compartilhadas. Onde os professores não valem mais que as crianças. Onde os professores não dão ordens e as crianças obedecem. Sabedoria, disse Roland Barthes, é “nada de poder, uma pitada de saber e o máximo possível de sabor...“

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